Aí, por mais de uma semana, o jornal nacional e os demais deixam de lado a crise mundial e passam a dedicar todo seu esforço ao caos catarinense, pedindo doações e mostrando "a generosidade do povo brasileiro, tão pobre e tão solidário".
As emissoras mesmo nao doaram um caralho.
Então as celebridades começam a capitalizar.
O tenista bondoso, milionário, visita bombeiros e vítimas. Não doa nem uma bolinha. Mas pede doações.
Aí a modelo famosa, milionária, diz que a família toda é de lá, os amigos. Ela aparece na TV falando ao telefone com a mãe. Choram juntas em rede nacional. A gata não doa nem uma calcinha borrada, mas pede doações.
Então vários atores e atrizes e apresentadores começam a fazer o mesmo, pois viram que dá certo, valoriza o passe. Pedem doações e o povo doa. De preferência na frente das câmeras.
Clubes (milionários) de futebol não doam nem uma bola furada, mas viram postos de arrecadação.
Empresas emprestam caminhões, já é alguma coisa. Mas pedem que os funcionários doem parte do salário mínimo, comida, roupa. Eles doam de coração, porque sentem a dor alheia na própria pele. Poderia ter sido o morro deles, a casa, a família deles.
Construtoras se mobilizam. Pedem que os funcionários doem roupas, papéis higiênicos, comidas prontas, parte do décimo terceiro. Mas elas mesmas não doam nem um tijolo.
E as escolas particulares... nem um toco de lápis. Mas capitalizam: entram na disputa de quem arrecada mais, publicam notas em suas newsletters e malas-diretas, aproveitam o chamariz e criam uma promoção: "faça aqui sua doação e ganhe um desconto na matrícula".
Pilotos de fórmula 1, milionários, doam seus capacetes para leilão, pois tem sempre alguém disposto a pagar por eles. Ainda é pouco. Então um deles abre a carteira. Doa 50 mil e promove com alguns colegas a "corrida das estrelas". E pilotam felizes, envoltos em carenagens abarrotadas de patrocinadores que pagam mais de 50mil para estar ali, associados à causa e aos campeões. Mas o que vai para os desabrigados é apenas o arrecadado junto ao público, que lota as arquibancadas e assiste ao festival de ultrapassadas e derrapadas e xingamentos entre os bons vivants bonzinhos que depois da festa ainda ganham troféus. Que lindo.
E os jogadores? Por mais ignorantes que sejam e serão sempre, esses são verdadeiros bloodhounds na arte de farejar oportunidades. Eles saíram da merda há pouco, sabem o que é a vida mísera e assim como o mootley, precisam fazer alguma coisa. Começam declarando a quem quiser ouvir e filmar que não custa nada ajudar. Verdade. Aí fazem um jogo beneficente. E patrocinado. E revêem os amigos, batem uma pelada, são aplaudidos e ainda correm o risco de ser nomeados embaixadores da unicef. Para a torcida tá ótimo: sai mais barato doar 1 lata de sardinha que pagar ingresso. E tudo pela nobre causa de estancar a dor alheia.
Aí o estado afogado começa a gritar:
"pára de doar! não tem mais onde guardar essas merda toda! Pára!!!"
A chuva continua. Uma lama grossa e rubra segue jorrando em nossas telas high definhetion. O brasil solidário e generoso quer sangue.
E por falar em sangue. Alguém lembrou de pedir? Alguém pensou em doar?